A Palavra que Resta
A Palavra que Resta, romance de estreia do autor cearense Stênio Gardel, apesar das poucas páginas, é tão profundo quanto apaixonante e reflexivo. Raimundo, ex -trabalhador da roça e “chapa”, ou auxiliar de caminhoneiro, privado de ir à escola na infância, agora aos 71 anos de idade decide aprender a ler e a escrever motivado, principalmente, pela carta de Cícero, seu amor adolescente cujas lembranças o acompanham pela vida inteira. Pouco mais de 50 anos atrás, ao serem flagrados juntos, apaixonados no dia-a-dia do manejo rural, as duas famílias os separaram: Cícero desaparece deixando apenas uma mensagem escrita, carta muda ao seu companheiro analfabeto. Raimundo é expulso de casa pela mãe.
Apesar das poucas páginas, o romance é complexo, não pela linguagem - aliás, a escolha de palavras e expressões cotidianas para mim são estratégias que enriquecem a história. A complexidade a que me refiro está no processo de formação do personagem central. Ser homosexual analfabeto no interior nordestino já adianta alguns dos muitos desafios enfrentados por Raimundo. O autor aborda temáticas tais como: o analfabetismo nas áreas urbanas, a homosexualidade e seus impactos em sujeitos idosos e a constituição de famílias sob o patriarcalismo. Essa combinação de temas colabora no processo de desconstrução de preconceitos que tendem a desvalorizar o letramento rural, a diversidade quanto à orientação sexual e a escrita como forma de expressão e garantia de integração social.
Com uma narrativa fluida e envolvente, Stenio Gardel constrói espaços, personagens, e passados que se convergem e desvelam, juntos, realidades que não somos acostumados a encontrar em obras mais convencionais. A opção do autor em não apontar uma localidade específica para as diferentes fases do romance, na minha opinião, serve para nos dar a liberdade de interpretar e enxergar os nossos Raimundos, que são encontrados em qualquer parte do nosso território nacional.
Quantos Raimundos são rimados com imundos pela sociedade e permanecem mudos para as letras?