O Avesso da Pele - Resenha Crítica
“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo”
O avesso da pele, ganhador do prêmio Jabuti de literatura em 2021, é o terceiro livro de autoria de Jeferson Tenório, graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e que atua como professor de língua e literatura na rede pública de ensino de Porto Alegre, além de colunista no jornal uol.
A história é narrada por Pedro, cujo pai foi morto durante uma abordagem policial. Ao adentrarmos na leitura, percorremos um caminho com diversos personagens, intercalando entre passado e presente. Pedro embarca em uma jornada de autodescoberta, explorando não apenas as histórias alheias, mas também a sua própria e o legado familiar deixado para trás.
A obra aborda uma variedade de temas de forma direta e crua. Como as relações familiares e suas complexidades, especialmente em famílias racializadas. Ou o racismo retratado em sua forma mais cruel e desumana, impactando o leitor com as palavras escolhidas por Jeferson. São assuntos muitas vezes negligenciados pela sociedade, mas que persistem no cotidiano, mesmo que ocultos. Muitas dessas pessoas tiveram sua identidade roubada e suas histórias e cultura apagadas, apesar de termos o conhecimento de que a grande parcela dos habitantes brasileiros se autodeclara negra.
No início de 2024, o livro enfrentou uma onda de censura nos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás. O título gerou uma série de debates após uma diretora de uma escola em Santa Cruz do Sul (RS) solicitar ao Ministério da Educação o recolhimento dos exemplares distribuídos aos alunos do ensino médio, alegando que a obra é inadequada por conter “vocabulário de baixo nível” e descrições de cenas de sexo impróprias. Um vídeo da diretora viralizou nas redes sociais, desencadeando uma série de comentários distorcidos, que acabaram propagando a desinformação. Dezoito municípios gaúchos anunciaram a remoção da obra, mas poucas horas depois a Secretaria de Educação do RS emitiu uma nota desautorizando a decisão. No entanto, escolas do MS, RS e GO decidiram retirar o livro de suas redes de ensino. Apesar de todos os acontecimentos conturbados, o autor recebeu apoio de algumas entidades, como ABL, CBL e SNEL, além do aumento significativo nas vendas e na pesquisa de leitores.
Toda essa movimentação em torno da obra levanta questionamentos sobre a suposta evolução e abertura da sociedade, que ainda permite que situações como essa ocorram. Os trechos considerados ofensivos e vulgares são cenas que ocorrem diariamente com pessoas de cor, e as frases são frequentemente utilizadas para ofendê-las e inferiorizá-las. A sexualização, fetichização e violência contra esses corpos são aspectos enraizados nas estruturas sociais muito antes de seu nascimento, contribuindo para sua constante marginalização.
O avesso da pele é uma obra premiada, o autor é qualificado, e ela foi selecionada por meio de um processo de avaliação realizado por profissionais. A maioria das críticas veio daqueles que não leram a obra, pegaram apenas um trecho isolado e buscaram silenciá-la imediatamente.
A liberdade de expressão artística e cultural é um direito garantido pela constituição brasileira. No entanto, vemos que esse ato de censura, promovido pelos mais poderosos, busca controlar o conteúdo consumido pela sociedade. Teoricamente, esse direito deveria ser assegurado a todos, mas na prática, vemos o contrário acontecer.
Em diversos artigos e estudos, é discutido o retrocesso político brasileiro ao longo dos últimos quatro anos, e eventos como esse demonstram o quão real é essa situação, em uma sociedade que tenta construir sua imagem como país em desenvolvimento, o que de fato é mas que ainda retrocede em várias áreas.